Acredito que quase todos os pais querem o melhor para os seus filhos, fazem de tudo para que as crianças possam vir a ter uma boa educação e um futuro decente. E isto é válido para os pais permissivos que deixam as crianças fazer tudo por respeito à sua condição de criança, para os pais mais autoritários que não os deixam pisar o risco com medo de que eles se tornem nuns índios ou para os pais que veem na palmadinha no rabo ou no tabefe de vez em quando uma atitude necessária e pedagógica, herdada do passado, muitas vezes da sua própria história de vida.
Não há um modelo pedagógico certo, não há pessoas iguais, não há opiniões iguais, nem entre pais nem entre pediatras ou psicólogos infantis. Cada criança é um caso diferente. Acredito em bases científicas que servem como ponto de partida para discussões gerais (que depois derivam em aplicações caso a caso, consoante a família, a criança e a envolvente social), mas não acredito em verdades universais sobre educação. Não acho, sobretudo, que nenhuma fação (a dos permissivos, a dos autoritários ou a dos tabefes na cara) tenha o direito de julgar cada uma das outras, achando-se dono de uma verdade educativa.
Mesmo perante modelos de educação iguais, ou parecidos, as crianças desenvolvem-se de maneiras diferentes, não são cópias umas das outras. Quantos e quantos casos há de irmãos que foram educados nas mesmas circunstâncias pelos mesmos pais, com as mesmas oportunidades e o mesmo modelo educativo, e acabaram por crescer de forma totalmente oposta, com comportamentos muito diferentes, seguindo caminhos contrários?
Domingo à noite, antes de me ir deitar, abri o telefone e vi que no meu feed de Facebook só havia um tema: o “Supernanny”, que havia estreado nessa noite na SIC. Li várias opiniões, quase todas arrasadoras para o programa, e fiquei a achar, de acordo com o que tinha lido, que a SIC havia pisado claramente o risco. No dia seguinte, à noite, lá fui ver o “Supernanny” para tentar perceber se a coisa era assim tão grave como tinham estado a pintar não só na noite de estreia, mas como ao longo de todo o dia de segunda-feira.
O programa começou com vários exemplos de mau comportamento da pequena Margarida. Saltos no sofá, birras para tomar banho, brincadeiras à mesa, não querer ir para a cama, coisas do género. Estava a ver aquilo e a pensar, “bom, o que eu vejo aqui é uma criança a ser criança, não é mais do que isso”. Claro que depois a coisa foi piorando, e piorando cada vez mais, até ter chegado ao ponto em que deixa de ser normal para qualquer pai achar aqueles comportamentos da criança normais. E foi nesse momento que percebi a polémica toda que estava ali instalada.
A Margarida, de 7 anos, é a menos culpada de tudo aquilo que se viu no programa, e embora seja a menos culpada é aquela que é duplamente prejudicada. Em primeiro lugar, como se percebe no programa, a Margarida nunca teve uma mãe que soubesse encontrar o ponto de equilíbrio entre a autoridade e o amor, não por incompetência, mas simplesmente porque achou que estava a fazer o melhor pela filha, achou que estava a proteger a filha, achou que a melhor forma de compensar a filha pelo facto de não ter um pai presente seria através de uma atitude mais branda e complacente. A mãe errou, e tem consciência de que errou, mas errou porque ninguém sabe o que é ser-se mãe até se passar por isso, ninguém sabe como irá reagir perante um filho antes de se ter efetivamente um filho, e todos nós, pais, num ou noutro momento, cometemos erros, e alguns até podem ser graves, mesmo que a nossa única intenção seja a de proteger os nossos filhos. E se uma mãe não sabe ser mãe, e está a errar continuamente no processo educativo da filha, então, não precisa de uma nanny nem de uma supernanny, não precisa sequer de aparecer na televisão, precisa sim da ajuda de um profissional, de um psicólogo, de alguém que, na intimidade de um consultório, lhe explique onde poderá estar a errar e de que forma poderá tentar agir para melhorar a sua vida e a da sua filha. Não é um programa de televisão que vai mudar isso, nem é esse o objetivo do programa de televisão — o objetivo é só um: criar conteúdo que prenda as pessoas, e quando mais conflito houver, melhor.
Em segundo lugar, a Margarida foi altamente prejudicada porque, uma vez mais, a sua mãe, na tentativa de resolver um problema familiar, acabou por expor a intimidade da filha de forma absolutamente abusiva e perigosa. O que se vê no “Supernanny” vai para lá de todos os limites do razoável, chega a ser criminoso, um atentado à dignidade de uma criança, que, sem ser ouvida, sem ter opinião, vê as suas fragilidades, emoções, ansiedades, os seus problemas comportamentais (causados por erros da mãe) expostos perante milhões de pessoas.
Não consigo entender como se pode achar normal fazer um reality show em cima de fragilidades, emoções e intimidade de crianças, como se pode exibir tudo isto em prime time, e, aqui, não culpo sequer a mãe, que embora seja responsável, embora tenha o dever de proteger a filha, pode bem ter sido vítima da pressão de uma produtora que tem como único fim o de criar conteúdo televisivo que sabe que vai captar milhões de espetadores. Precisamente por conhecer esta realidade é que escrevo isto, porque sei bem o que os produtores dizem às pessoas comuns para as tentarem convencer a entrar em formatos deste género.
Concluindo, acho que a única coisa que importa aqui é que este formato assenta num princípio totalmente imoral, que roça a ilegalidade, que é o da violação do direito à dignidade de uma criança. Por muitas voltas que a vida da Margarida, por mais boa miúda que se venha a tornar, para quem se cruzar com ela nos próximos dias, nas próximas semanas e provavelmente nos próximos anos, ela será sempre aquela pestinha que apareceu no programa da SIC. E que impacto é que esse julgamento vai ter na vida desta criança? Ninguém pode ter a certeza. E se for um impacto altamente negativo e lesivo para a miúda? É nessa altura que vão bater à porta da produtora do “Supernanny” à procura de uma indemnização? Até podem ir, mas eles querem lá saber da vida da miúda, o que importa é criar mais um formato sensacionalista, voyeur ou trashy para agarrar pessoas à televisão.