Pelos Trilhos dos Abutres

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Esta alegria toda foi por ter chegado a Gondramaz, a incrivelmente bela aldeia de xisto por onde passámos
Muitas vezes perguntam-me há quanto tempo corro. Sinceramente, não sei bem. Lembro-me de ter corrido a minha primeira meia-maratona aos 18 ou 19 anos, em Setúbal. Na altura, fiz 1h37, que durante muito tempo foi o meu recorde. Mas mesmo nessa altura, já corria com regularidade. Desde sempre pratiquei desporto, fui atleta federado em andebol dos 11 aos 20 anos, e durante esse período sempre gostei de correr, muito mais provas de resistência do que de velocidade.

Em todos estes anos, nunca me deu para correr no mato, ou por trilhos. Sempre fiz estrada. A primeira vez que me aventurei num trail foi em Dezembro passado, na primeira edição do Trail Noturno de Leiria, de 22 km. E gostei. Muito, mesmo. Foi uma experiência totalmente diferente, que me faz passar pelas mais variadas sensações – “isto até é fácil”, “porra que não vou aguentar”, “oh não, mais uma subida”, “pronto, vou cair por aqui abaixo!”, “vou conseguir subir isto tudo sem parar”, “consegui!”, “nunca mais me meto nisto”, “tenho de ver quando é a próxima, que isto é viciante”. O trail é mesmo isto: um misto de experiências, sensações, vivências, desafios, que nos obrigam, a toda a hora, a tomar decisões – corro ou ando, acelero ou descanso, vou pela esquerda ou pela direita. Em todos estes momentos, temos de nos superar, temos de lutar contra o corpo e usar a cabeça nessa luta, temos de ser mais fortes a todos os níveis, mais exigentes para connosco. Aprendi isso em Leiria e quis pôr isso à prova num segundo trail, que corri no passado sábado, em Miranda do Corvo, o Trilho dos Abutres, onde fui com a minha equipa (e digo “minha equipa” com o orgulho de quem foi convidado para integrar este grupo de grandes atletas e excelentes pessoas, os OFFtel runners/JV, de Leiria).

O primeiro desafio foi o de acordar às 3h55 da manhã. Venci-o sem problemas, porque eu sou pessoa de acordar cedo, e se me encostar umas três horinhas já estou fresco. Às seis da manhã estava em Leiria, enfiado no autocarro, juntamente com a equipa, prontos a seguir para Miranda do Corvo.

O Trilho dos Abutres é conhecido por ser uma das mais duras e exigentes provas de trail. E eu tinha consciência disso. Mas nunca achei que pudesse ser tão mais difícil que a de Leiria (que me custou imenso). Pelos meus cálculos, iria percorrer os 23 km em Miranda do Corvo em perto de 2h50. Em Leiria havia feito 22 km em 2h42, mas houve uma altura em que estivemos quase 10 minutos parados, por isso, imaginei que faria sempre a prova abaixo das 3h. Ah! Ah! Ah!

O trilho começou com uma subida grande por um carreiro estreito, onde não cabiam mais de três atletas lado a lado. Ali fomos durante uns 800 metros, a passo de caracol. Tudo bem. Nada de especial. Mais uma subida, agora em terreno aberto, e lá comecei a correr a sério. Uma descida, um pouco de estrada, e finalmente os trilhos. Com uns 3 km percorridos, a prova entrou no que chamo de fase de escalada. Trepar rochas agarrado a árvores, subir montanha de gatas, agarrado a pedras, raizes, colocando os pés em sítios firmes para não vir por ali abaixo. Sem exagero, andei uns 50 minutos naquilo. Escusado será dizer que percorri apenas uns 2 ou 3 km. Pelo meio, o percurso passava por pontes de madeiras feitas com um tronco, as quais só podiam ser passadas se nos segurássemos a cordas, houve vários momentos em passámos o riacho com água pelos joelhos, galgámos rios de lama, e depois mais rochas para trepar. Tudo, sempre, sempre a subir. Pelo meio, era sempre possível parar e olhar para aquelas paisagens deslumbrantes, com quedas de água, o rio a passar, as margens a fazer lembrar os cenários de “O Senhor dos Anéis”, um Portugal que quase ninguém conhece, e que deveria ser obrigado a conhecer.

Em várias ocasiões, mesmo antes de chegar a meio do percurso, senti-me no limite das minhas forças. Fui obrigado a fazer partes do percurso a andar, sobretudo nas inclinadíssimas subidas, por terrenos instáveis e, muitas vezes, perigosos. Os meus ténis novos, que são óptimos em trilho, escorregavam demasiado na rocha molhada, por isso, tive de ter o máximo de cuidado. Ainda caí umas sete ou oito vezes, sobretudo a descer, mas felizmente não me aleijei.

Mais ou menos a meio, o percurso passou por uma das maravilhosas aldeias de xisto, a aldeia de Gondramaz. As casinhas parecem de bonecas, tudo perfeito, tudo arranjadinho, um mimo. Era lá que nos esperava um petisco, com tostas com mel e marmelada, laranjas, bananas, frutos secos, bebidas energéticas e chá quente. Sentei-me por dois minutos, exausto, para retirar os quilos de pedras e lama que tinha dentro dos ténis, e que me estavam a complicar a corrida. Lá comi qualquer coisa e fiz-me ao trilho. Começou uma enorme descida, que se revelou tão complicada como a subida. Grande parte foi feita de gatas, a tentar arranjar forma de não cair por ali abaixo, sempre a saltar obstáculos, agarrado a cordas, a troncos, passando pontes, atravessando por dentro de riachos, correndo pelo meio dos caminhantes que nos iam dando força (já agora, muito obrigado aos vários que me reconheceram e me deram um incentivo especial – naquela fase, e com o desgaste que já levamos em cima, sabe melhor que um abastecimento).

Estava completamente arrasado quando cheguei ao ponto mais baixo da prova. Nessa altura, passava por algumas pessoas que me diziam “vai, está quase”. O meu GPS morreu pelo caminho, logo, não fazia ideia de quantos quilómetros faltavam para a meta, mas como já levava quase 3h de prova, calculei que estivesse quase, quase no fim. Passei por um abastecimento e um dos voluntários lá me disse: “Faltam uns 5 ou 6 km”. Não quis acreditar. Mas era verdade. O percurso era agora plano, e aproveitei para dar tudo e tentar recuperar tempo. Comecei a correr o mais depressa que pude, no limite das forças. O percurso chegou a uma zona em que um carreiro de água o dividia ao meio e nos obrigava a saltar constantemente de um lado para o outro. A cada salto, sentia os músculos das pernas a latejar, a gritar, a desconjunturarem-se todos. Achei que a qualquer momento iria ter uma cãimbra. Nunca me tinha sentido assim. Era uma dor física forte, mas nem isso me fez parar. Cheguei a Miranda do Corvo arrasado, e ainda tive de fazer mais 1,5 km até à meta, com uma subida de morte pelo meio (aqui, tive de segurar os músculos das pernas, porque achei mesmo que se iriam desmontar). Terminei a prova 3h34 depois de ter partido. Fiquei em 51º do meu escalão e em 79º da classificação geral.

O tempo e as classificações, agora, dizem-me quase nada. A sensação de vitória obtém-se quando, em consciência, demos tudo o que tínhamos. Quando me sentei no chão, depois de cortar a meta, senti-me um vencedor, feliz e realizado.
Foi a prova mais dura que já fiz na vida – mais do que a maratona que corri o ano passado -, e a única certeza que tenho é a de que quero mais, muitas mais, como esta.

Uma palavra final para todos os meus colegas da OFFtel runners/JV, que ajudaram a tornar este dia ainda melhor.

Ficam algumas imagens da prova.

Foi nestas descidas que dei uns oito ou novo tralhos durante a prova
Os meus ténis novos são excelentes para este tipo de piso, mas em pedra escorregam um pouco
Tivemos de passar por dentro do rio sei lá quantas vezes – fiquei com os ténis cheios de pedras e lama
Sempre a subir, subir, subir.
Isto parece ou não parece o Shire, onde vivem os hobbits em “O Senhor dos Anéis”?
A vontade que eu tive de mergulhar nesta queda de água – é apenas uma das muitas por onde o percurso passa
A grande equipa OFFtell runners – eu estou ali mais à esquerda, de pé, com uma cena vermelha na cabeça
Mais um cenário deslumbrante por onde passou a corrida

23 Comentários

  1. Fantásticas fotografias, não consegui ler o texto, sem fim, mas gosto do espirito.

    Eu só consigo correr com música, a música dá-nos energia e permite-nos continuar, se fosse para ouvir os passarinhos acho que adormecia.

  2. Boas!
    Gostei do post!
    Eu fiz a ultra, aliás como já o tinha feito o ano passado!
    Quando aqui no teu blog referiste as sapatilhas (eu sou do norte…) que adquiriste para fazer os abutres, comentei com a minha namorada (que é fã e leitora da pipoca) que o arrumadinho nos Abutres ia dar uns valentes malhos, devida à sua aderencia nula em pedras e madeira molhada!
    Pelos vistos não me enganei!
    Para a próxima aventura-te na Ultra, sem os fones, assim ouves os palavrões que a malta vai soltando à medida que surgem as dificuldades e não te esqueças de enriquecer o teu armário das sapatilhas (desculpa mais uma vez o termo) com umas que se agarrem melhor ao terreno. Tambéms as há e bem bonitas, com o pequeno problema de serem caras…aproveita os saldos que só terminam no fim do mês de Fevereiro!

    Só mais uma coisa:
    Trail é interpretação, estrada é programação.
    Trail é poesia, estrada é prosa!

    Abraço
    José Capela

  3. Olá Ricardo.
    Eu disse-te para experimentares e pronto…agora já estás viciado! Vi-te junto ao autocarro a mexer na mochila que estava no chão. Reconheci-te pela cor dos ténis…
    fiz a Ultra de 45km, a minha primeira Ultra Maratona. Consegui chegar ao fim, que era o meu objetivo, em 9h41minutos. E inteiro…
    Entretanto já estou inscrito em mais duas provas de trail em Fevereiro. É este o bicho…

    Grande abraço
    Rui Ferreira

  4. Sou leitora assídua, mas nunca me deu para comentar. Porém, hoje tem de ser. Já fiquei tentada quando se escreveu sobre Leiria, mas agora arrisco 🙂

    O meu pai, o meu tio, a minha tia (uma das maiores cá em Portugal!) e alguns dos meus primos são corredores de trail há muito, muito tempo. O meu pai acho que também o faz desde os tempos da faculdade (e hoje já vai com 47!) e tenho o maior orgulho neste hobbie. Para mim, ele é um herói. A paixão com que fala dos sítios que vê, dos sítios por onde só vocês passam, deixam-me maravilhada.

    São conhecidos no meio da corrida como a família Serrazina – uma vez que andar a correr montes e vales é algo que lhes 'corre' nas veias (são autênticos viciados!!). Cruzaste-te com algum deles? Estou curiosa por saber!

    Beatriz

  5. Um obrigado por participares na melhor prova de trail em Portugal 🙂 e por teres escrito estas palavras, já que no nosso pais a imprensa só fala de futebois e tristezas
    Um obrigado
    Suadações abutricas
    Carlos o rapaz da bike :):)

  6. Parabéns pela excelente prova! Grande aventura an? 🙂 Vou acompanhando as provas até porque uma grande amiga minha também faz parte da equipa OffTell Runners (a Salete Tavares, a pequenina que está à tua frente na foto) e que tb conseguiu uma belissíma classificação.
    Continuação de boas corridas!

  7. Miranda fica a uns 7m de carro da minha terra, a Lousã.
    Tem paisagens incríveis, um respirar que é outro, enfim, tem um gostinho especial perdermo-nos por esta zona.
    Gondramaz é muito, muito giro. 😉

  8. Olá, parabéns pelo post, fez-me sentir como se estivesse presente. As fotografias então são qualquer coisa de espectacular. Tal como tu, sou corredor de estrada e estou prestes a participar num trail (Sta.Luzia em Viana) no próximo dia 10.02. Quero sentir o que tu sentis-te quando chegar ao fim.
    Aquele abraço e boa recuperação.

  9. Olá Lucy. Eu corro sempre a ouvir música. Sempre. Correr é um acto muito solitário – pelo menos para mim, que o faço quase sempre sozinho. E a música tem várias funções: motiva-me, dá-me energia, descontrai-me, e isso é importante em desafios longos, como este. Ainda assim, no próximo trail já não os levo, mas apenas porque há demasiados saltos, quedas, zonas de água, e tenho medo que se estraguem.

  10. Eu como amante da natureza gostava de te perguntar algo mas sem qualquer índice de ironia ou crítica destrutiva, apenas por curiosidade… no meio da natureza porque levas os teus auscultadores? num cenário destes não seria de aproveitar o silêncio ou os sons da natureza? ou é por fazer parte do outfit? 😉

    Fica bem e continuação de boas corridas 🙂

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