
Aquela subida parecia não ter fim. Não teria mais de 200 metros, mas, ao fim de 42 quilómetros, cada passo custa, cada metro sai do pelo, e a mim, naquele momento, aquela subida assemelhava-se a uma daquelas estradas sem fim. Não tinha forças para manter uma postura decente, não tinha energia para acelerar, não tinha equilíbrio emocional para sorrir e pensar que a meta estava já ali, a um minuto, a 30 segundos. Um passo à frente ia o Rui Catalão — que entrou na corrida ao quilómetro 27 para me acompanhar nos últimos 15. Ele dava-me força, incentivo, motivação, fazia tudo o que podia, eu é que já não correspondia, embora lutase com tudo o que tinha, com tudo o que me restava.
Aquela subida parecia não ter fim. Mas teve. A meta ficou para trás de mim exatamente 3h29m31s depois de ter partido, ao lado do Parque da Cidade. Voltei a ter forças para sorrir, para soltar um dos “foda-se, consegui” mais sentidos de sempre e para dar um abraço ao Rui. Terminava ali a minha 14.ª maratona, a segunda que corri no Porto, mas o terminar ali a maratona significava apenas que a parte da corrida, a prova em si, tinha chegado ao fim. Só isso. Porque correr uma maratona não é só fazer 42,195 quilómetros. As maratonas começam meses antes da prova, e terminam, muitas vezes, dias depois da prova. E esta maratona, na sua visão global, começou a 1 de outubro, dia em que resolvi voltar a correr, depois de praticamente um ano parado, e terminou mais de 24 horas depois de ter cortado a meta, na segunda-feira, às quatro da tarde, quando, já em Lisboa, abracei a Isabel e o Rui e nos despedimos com a promessa de nos encontrarmos em breve para acertarmos tudo sobre a próxima maratona que iremos fazer juntos.
Estes textos que irei escrever não são sobre como é que foram aqueles 42 quilómetros pelas ruas de Matosinhos e do Porto, são muito mais sobre como a minha vida mudou nos últimos meses, como se tinha alterado antes disso, e também sobre aqueles quatro dias que vivemos juntos, eu, a Isabel, o João Catalão, o Rui Geraldes, o João Tiago, o Rui Catalão, a Maria Inês, a Catarina, o Fernando, a Mena e o Luís. São textos que vão falar muito mais sobre o outro lado da corrida, aquele que só quem corre é que entende, e que no fundo é aquilo que nos faz, a nós, corredores, continuar, correr mais e mais, sofrer no alcatrão ou nos trilhos, porque o que está por detrás desse sofrimento vale tudo, compensa tudo.
A minha Maratona do Porto começou em junho. Estava de férias num hotel perto de Torres Vedras, olhei para o vidro de uma janela que estava à beira da piscina e vi o reflexo de uma pessoa em que não me revia, uma pessoa que não queria nem quero ser. Andava a sentir-me fisicamente mal, inchado, sem energia, sem confiança, tristonho, desmotivado. Estava com 74,8 quilos, flácido, com um pneu pronunciado na barriga, um cenário que me deixou ainda mais deprimido e sem força para começar o sempre duro processo de recomeçar. Esta realidade custava-me ainda mais porque sucedia a outra, não muito distante, totalmente oposta.
Oito meses antes.
Munique, 9 de outubro de 2016, 11h30. Cortava a meta da Maratona de Munique e atingia um objetivo para muitos inimaginável: acabava de correr a minha terceira maratona em apenas 15 dias. Berlim a 25 de setembro, Lisboa a 2 de outubro e Munique a 9 de outubro. Sentia-me em grande forma, capaz de levar o mundo às costas.

Depois dessa aventura, decidi parar um mês para dar total repouso ao corpo e às pernas. Esse período coincidiu com algumas mudanças drásticas na minha vida pessoal, que foram retardando o meu regresso às corridas. Fui perdendo progressivamente aquela sensação de estar em forma, que contribuiu para ir adiando o regresso às corridas. E fui adiando. E adiei, adiei mais uma vez e depois outra. Passou novembro, dezembro, recomeçou o ano, chegou fevereiro e nada. Dei por mim enfiado no ciclo negativo e destrutivo da vida, em que não fazemos o que gostamos porque estamos tristes e desmotivados, e sentimo-nos tristes e desmotivados porque não fazemos o que gostamos. Foi assim comigo, é assim com tanta gente.
Também como acontece tantas e tantas vezes, quanto menos exercício fazemos, menos cuidado com a alimentação vamos tendo, mais porcaria vamos comendo, e, aos poucos, fui ganhando algum peso. Normalmente, costumo andar ali entre os 68 e os 70 quilos, e, lentamente, fui começando a quebrar a barreira dos 70, depois 71, depois 72.
Em maio, numa altura em que já me estava a equilibrar emocionalmente, a estabilizar a minha vida, resolvi tentar recomeçar. A oportunidade era boa, a meia-maratona de Setúbal, a minha terra, as minhas pessoas. Voltei à estrada. Treinei duas semanas e corri a prova. Mas voltei a parar.

Fui usando as desculpas que todos usam, e que no meu subconsciente eu sei que não passam de desculpas. Era o trabalho, eram os filhos, era a falta de tempo, era estar frio, ou estar calor, era não ter uma passadeira, era tudo e mais alguma coisa, mas no fundo não era nada disso, era só eu que não era capaz de calçar os ténis e sair de casa, não era capaz de acordar uma hora mais cedo para ir correr, era eu que chegava ao fim do dia e deixava-me ficar no sofá a beber um copo de vinho e a comer queijo em vez de ir para a rua treinar. O problema nunca é a falta de tempo, é tudo uma questão de prioridades mentais, de força de vontade para lutar por qualquer coisa. E eu fui outra vez derrotado. Vieram as férias, as viagens, o calor, os petiscos, e nada.
Chegou o tal dia em que me vi no reflexo daquele vidro e não me reconheci. Não estava só fisicamente mais gordo, estava mentalmente mais fraco, mais frágil, e o Ricardo que eu conheço não é assim, não é nada disso, é forte e resiliente e lutador e saudável. Decidi então que não queria mais, que ia mudar, que ia voltar a ser eu, e para voltar a ser eu tinha de calçar os meus ténis de corrida, tinha de ir para a estrada, tinha de lutar. E fui à luta. Comecei por mudar a minha forma de comer. Dia 17 de julho resolvi cortar com todo o consumo de proteína animal, e retirar todos os alimentos de origem animal da minha dieta. Passei a seguir uma alimentação vegetariana restrita (ou vegana). Em agosto, na semana em que estive de férias na Comporta, fiz uma primeira abordagem à corrida. Treinei durante sete dias seguidos. Senti-me feliz, mas ainda muito fraco de pernas e pulmão. Parei outra vez com os treinos, mas mantive o regime alimentar.

Assim foi até dia 1 de outubro, o dia em que tudo mudou.
Dia 1 de outubro, acordei cedo, perto das 6h30 da manhã. Subi para cima da balança e vi, feliz, que os números estavam onde nunca me lembro de terem andado: 65 quilos. Em menos de três meses, passei dos 74,8 para os 65. Perdi 9,8 quilos mudando apenas a minha alimentação. Não fiz exercício, não passei fome, comecei até a comer mais do que comia, e perdi praticamente 10 quilos. Nessa manhã, assumi também um compromisso: ia voltar à estrada de vez, com um objetivo: preparar uma maratona em 15 dias. Queria, a 15 de outubro, correr a Maratona de Lisboa. Naquela manhã de dia 1 de outubro, domingo, dia de sol e calor, fui para a rua e corri. Foram 12 quilómetros em 1h02m35s, a um ritmo de 5’13’’. Fraco, para o que sou capaz, muito bom para quem estava há praticamente um ano parado.

Nessa semana, treinei todos os dias de forma intensa. Domingo à noite fiz o meu único treino longo, de 30 quilómetros, que me deixou totalmente exausto e com dúvidas sobre se conseguiria terminar a maratona no domingo seguinte. Faltava uma semana. A experiência das 12 maratonas que havia corrido anteriormente alertou-me para a necessidade de dar descanso ao corpo, por isso, a segunda semana foi bem mais ligeira, e teve vários dias de descanso. Chegou o dia da corrida.
Ainda não eram 7 da manhã quando cheguei a Cascais, ao local de partida para a maratona. Sentia aquele sopro no estômago que se nos dá quando a vida nos vai trazer qualquer coisa de excitante. Quando ouvi o tiro de partida passou tudo. Na estrada, fui eu durante 42 quilómetros. Corri pela marginal feliz, cheguei a Lisboa feliz e entrei na reta da meta, no Terreiro do Paço, a sentir-me dono do mundo. Cortei a meta com vontade de chorar e larguei mais um daqueles “foda-se” que se nos vêm do fundo da alma. Era o fim da Maratona de Lisboa, mas era só o meio da história da Maratona do Porto. Essa continua depois.
