Muita gente disse que eu era louco por ir correr duas maratonas no espaço de uma semana (algumas não sabiam ainda que não serão duas numa semana, serão três em duas semanas, mas já lá vamos).
Terminei a Maratona de Berlim sem grandes dores nas pernas, nem aquela sensação de cansaço extremo — que já senti noutras corridas. No domingo à tarde, depois da prova, estava relaxado, tranquilo, pronto para qualquer caminhada pela cidade. Isto deu-me a confiança de que precisava para, na semana seguinte, poder abordar a corrida de forma diferente daquela que imaginava.

Antes de partir, em Cascais, aproveitei aquela hora em que estive ali sozinho, com os meus phones, concentrado, para pensar na minha estratégia de corrida. Em Berlim, embora tivesse batido o meu recorde, fiquei com uma sensação de que poderia ter feito mais. A primeira metade da corrida foi muito fácil, e sei que podia ter puxado um bocadinho mais. Por isso, desta vez optei por fazer isso: esticar mais na primeira metade e ganhar uma vantagem considerável que me permitisse gerir o tempo na segunda metade.

Assim foi. Comecei muito rápido, com os primeiros quilómetros na casa dos 4’05” a 4’15”. Fui assim durante os primeiros 10 km, altura em que ia já em plena marginal. Foi aí que senti mais a diferença entre Berlim e Lisboa. Na Alemanha, o percurso é totalmente plano, sem oscilações, e em Lisboa não, há imensas subidas e descidas, algumas delas acentuadas, que nos deixam as pernas feitas num oito. Ainda assim, a coisa correu bastante bem. Para o conseguir, tive de me concentrar ao máximo e abstrair-me do que estava à minha volta. Aqui, foi bom a prova não ter tido muito público, que é sempre muito motivante, mas também nos distrai e nos obriga a olhar para o lado e a perder algum tempo e concentração. Ali, fui totalmente focado na estrada, na passada e na postura. Resultou.
Passei à meia-maratona, já a chegar a Lisboa, com 1h32m, muito próximo do meu recorde pessoal da distância. Nesta altura, levava uma vantagem de 13 minutos relativamente ao meu recorde da maratona. Imaginando que demoraria o mesmo a fazer os últimos 21 km, terminaria a maratona com 3h04m, o que me pareceu logo irreal. Mas sentia-me bem, feliz, confiante, e com pernas para aguentar o ritmo. Como já sei o que a casa gasta, comecei a poupar-me um bocadinho, tentando sempre ficar num ritmo abaixo das 4’35”, o que fui conseguindo até aos 25 km. Um pouco antes, no entanto, aconteceu o primeiro problema na prova. O abastecimento de sólidos, composto por banana e laranja, não cumpriu com o que se esperava. Para quem não sabe, a banana é um ótima fonte de magnésio, micronutriente que ajuda a prevenir cãimbras, e, por isso, é tão procurada pelos corredores e existe em todas as provas longas (estrada e trail). Eu não levei suplementos de magnésio precisamente porque ia a contar com dois abastecimentos de banana. Só que a fruta estava completamente verde. Quando digo verde não é aquele verde-verdinho, que amarga um bocadinho na boca, não, é verde mesmo verde, que uma pessoa nem consegue descascar. Foi o que aconteceu. Agarrei em dois pedaços de banana e, enquanto corria, comecei a tentar descascá-los. Primeiro com as mãos — não consegui — e depois à dentada — não deu. Optei por tentar comer a banana mesmo assim, com casca e tudo, mas sabia tão mal, tão mal, que cuspi tudo e deitei a banana fora (aconteceu exatamente o mesmo no segundo abastecimento de sólidos — tudo igual).
Cheguei ao Cais do Sodré, ali com 30 km, já com dificuldades. Comecei a sentir as pernas muito pesadas, falta de força, quase como se me estivesse a acabar a gasolina. Fui aí que vi a minha mulher, que estava à minha espera na rua do Ouro, para me dar uma força.
— Como é que estás?
— Mal.
— Mal? Então?
— Tenho as pernas a pesar e estou a quebrar. Isto não vai ser fácil. Mas só preciso de fazer 12 km abaixo dos 5’00” e bato o meu recorde.
Apesar de ter percebido que ia sofrer muito até final, também sabia que levava uma vantagem tão grande para o meu recorde que só mesmo um incidente qualquer me impediria de bater o meu recorde de Berlim.
Só que a partir daí o meu rendimento caiu brutalmente. Passei a ter dificuldades em correr abaixo dos 5’00” e comecei com médias de 5’08”, 5’11”, 5’14” e percebi que se não me punha a pau a coisa ia complicar. Psicologicamente, ajudava saber que a lebre das 3h15 (o senhor que corre com um balão a dizer 3h15 e vai terminar com esta média) ainda não tinha passado por mim, e nem sequer estava perto. Perto dos 37 quilómetros, já depois do viaduto do Lux, rebentei completamente. Passei para médias perto dos 5’30”, e quando tentava esticar mais e recuperar sentia as pernas muito doridas e pesadas — não obedeciam às ordens do cérebro. Estava a pagar várias coisas. Em primeiro lugar, a maratona que havia feito uma semana antes, em segundo lugar, o facto de ter puxado muito nos primeiros 25 km, e em terceiro lugar a falta de magnésio da banana.

Aos 39 km, já a entrar no Parque das Nações, deu a primeira grande ameaça de cãimbra na parte posterior da coxa direita. É uma coisa raríssima, que só me lembro de me ter dado no Trilho dos Abutres, há uns anos. Queria muito, naqueles últimos três quilómetros, compensar o tempo perdido e dar tudo o que tinha, batendo assim o meu recorde. Só que não estava a conseguir. Sempre que tentava acelerar o ritmo, sentia o músculo da coxa a ameaçar quebrar e retraía-me. Apesar de tudo, era preferível ir mais devagar e chegar à meta do que ficar-me pelos 40 km com uma cãimbra que não me deixaria terminar. Passei pela Sónia Morais Santos numa altura crítica, a pouco mais de 1 km para a meta. Ia literalmente nos meus limites de sofrimento. Mesmo em frente ao Vasco da Gama vi passar por mim a tal lebre das 3h15, numa velocidade supersónica. Já ia atrasada. A esperança de fazer 3h15 já tinha morrido. Restava-me lutar pelo meu recorde, que só conseguiria bater por alguns segundos. Continuei a lutar e a sentir os músculos posteriores das coxas a tremer. Iriam quebrar a qualquer instante. Antes da curva para a reta da meta, o José Guimarães (meu companheiro na minha única ultra-maratona) deu-me uma força extra. Virei para os últimos metros. Deviam faltar uns 250. Olhei para o relógio: 3h16m50. O meu recorde era de 3h17h58. Se acelerasse talvez ainda desse. Tentei, dei tudo, e senti o músculo da perna esquerda a esticar ao máximo. Depois foi o direito. Continuei sem parar, ao ritmo que me permitia correr, mas sem cãimbras. Vi finalmente a meta e o cronómetro. Marcava 3h17h50 e ainda tinha muito para correr. Já não ia dar. Abrandei e percorri o que faltava cabisbaixo, exausto. Cortei a meta com 3h18m28s. Falhei o meu recorde por 30 segundos. Pela primeira vez na vida, terminava uma maratona sem uma sensação imediata de triunfo, vitória, superação. Não cortei a meta de braços abertos, como sempre, nem de punho no ar, nem com a bandeira de Portugal bem lá no alto. Estava triste e desiludido comigo.

Meia hora depois, já na zona de recuperação, dei por mim a olhar para tudo aquilo em perspetiva, e a verdade é que o resultado, os tais 30 segundos, estavam a minar o que de mais importante se tinha passado ali. A verdade é que, em oito dias, eu tinha acabado de correr duas maratonas na casa das 3h18m. Mais: tinha conseguido, numa maratona como a de Lisboa, difícil, cheia de subidas e descidas, com pouquíssimo público a assistir, com calor, vento de frente e com problemas nos abastecimentos, um resultado praticamente igual ao de Berlim, uma maratona bem mais rápida e fácil, cheia de apoio e com condições perfeitas atmosféricas perfeitas. Não havia razão para me sentir frustrado. Havia, e há, muita razão para me sentir orgulhoso do que fiz, até porque fiz tudo o que consegui fazer, e se não fiz mais foi porque não tive forças para isso, e não porque desisti sem lutar. É por estas coisas que continuo a correr. Porque sei que a cada prova saio mais forte, mais resiliente, mais combativo, mais preparado para qualquer coisa, na estrada, no mato ou na vida.