Escrevi este outro texto três dias antes da Maratona de Berlim, e depois de ter passado praticamente duas semanas sem treinar. Quando o publiquei tinha os níveis de confiança muito rasteirinhos, sentia-me mais pesado, menos rápido, menos forte do que no final de agosto e, por isso, não acreditava sinceramente que iria conseguir fazer um tempo fantástico em Berlim. Lá no fundo, tinha esperança de andar ali pelas 3h20m, embora acreditasse que o mais razoável fosse mesmo qualquer coisa ali entre as 3h20m e as 3h25m. Só que durante os 42,195 quilómetros de Berlim aconteceu muita coisa.
Chegámos à zona da partida já muito perto das 8h30, ou seja, 45 minutos antes do arranque da prova. Não se pode dizer que estivéssemos folgados de tempo. Foi chegar, procurar a zona para deixar o saco com o casaco, o telemóvel e uns suplementos para tomar no final da corrida, ir à casa de banho (com as maiores filas de sempre — 20 minutos à espera) e em menos de nada já eram 9h10. Como não sabia muito bem onde ficavam as portas de acesso à zona de partida (a minha porta era a D — ia da letra A ao H), resolvi ir a correr. Uns 400 metros depois, percebi que ainda me faltavam aí uns 600 para chegar. Olhei para o relógio e só tinha uns dois minutos até começar a corrida. Sprintei e quando me estava a aproximar comecei a ouvir o speaker:
— 15 seconds! 10, 9, 8…
Já tinha sido dada a partida quando entrei na minha box, até porque havia uma fila enorme fora da zona de acesso à minha porta, provavelmente cheia com atrasados como eu. Comecei a maratona já com um quilómetro de corrida nas pernas, com um sprint e tudo.
Passei pela zona de ativação do chip e pus o relógio a contar. Embora estivesse rodeado de milhares de pessoas, conseguia correr-se e não tive de andar a serpentear pelo meio dos corredores, como acontece, por exemplo, na meia-maratona de Lisboa quando se começa a correr pela Ponte 25 de Abril.
A estratégia para esta corrida era diferente das que segui em todas as outras maratonas que já tinha feito. Sabia que se mantivesse um ritmo de 4’42’’ (isto significa demorar 4 minutos e 42 segundos a fazer 1 quilómetro) igualaria o meu recorde pessoal (3h18m58s), mas sabia que corria o risco de quebrar a partir dos 30 quilómetros, por isso não me pus a inventar. Ia tentar fazer pelo menos 25 quilómetros ali entre os 4’38’’ e os 4’42’’ e depois logo se via como estava.
Desta vez fui altamente disciplinado. O primeiro quilómetro fiz em 4’44’’, o segundo em 4’42’’ e depois consegui baixar ligeiramente e andei sempre ali nos 4’37’’, 4’41’’, 4’39’’, sem grandes oscilações. O problema, muitas vezes, é saber-se que se consegue ir mais rápido e não se controlar esse impulso. Foi sempre aí que falhei. Até Berlim, nunca tinha conseguido fazer um split negativo, que basicamente é fazer uma segunda parte da corrida (dos 21 aos 42 km) mais rápida do que a primeira.
E assim fui, controlado, sempre no meu ritmo tranquilo, até aos 25 km, mais ou menos. Aí, comecei a fazer experiências e a focar-me mais na técnica de corrida. Basicamente, inclinei o tronco ligeiramente para a frente e tentei impor uma passada mais supinadora (tocar primeiro com a ponta do pé no chão, e só depois o calcanhar, ou neutra, tentando contrariar a minha passada, que é mais pronadora (toco primeiro com o calcanhar no chão e impulsiono o corpo com o dedo grande do pé). Resultou. Comecei a fazer quilómetros na casa dos 4’20’’: 4’26’’, 4’28’’, 4’29’’, por aí. Continuava a sentir-me fresco e comecei a fazer contas de cabeça (eu corro sem música, tenho de me entreter com qualquer coisa). Sabia que na primeira metade tinha cumprido com uma média muito próxima dos 4’42’’, mais coisa menos coisa, por isso, a cada quilómetro que passava e eu baixava essa média estava a ganhar segundos. Se fazia um quilómetro em 4’30’’ sabia que tinha uma vantagem de 12 segundos. Se no seguinte fazia 4’36’’, ganhava mais 6 segundos, e já ía com 18 segundos de bónus. E por aí adiante. No fundo, fui sempre a fazer contas.

Chegou aquela que é normalmente a altura crítica das maratonas, o quilómetro 33. Sentia-me muito bem, e resolvi, nessa altura, focar-me totalmente na técnica de corrida. Esqueci o ambiente (incrível) à minha volta, e comecei a pensar unicamente na passada, na inclinação do tronco e na respiração. Média ao quilómetro 33: 4’24’’. Média ao quilómetro 34: 4’27’’. Média ao quilómetro 35: 4’18’’. Foram os três mais rápidos de toda a prova. Nessa altura, interiorizei que iria bater o meu recorde, até porque naqueles três quilómetros tinha ganho um bónus de mais de um minuto, por isso, bastava-me correr os últimos sete a um ritmo de 4’45’’ e estava feito.
Problema: estive o tempo todo a fazer contas à distância que o meu relógio marcava, e não à distância real da prova. Quem corre sabe que há sempre um desfasamento que pode chegar aos 400 ou 500 metros (por vezes mais), e eu não estava a contar com isso, esqueci-me desse detalhe. Ou seja, quando cheguei ao quilómetro 40 no meu relógio, na estrada ia ainda no 39,6. Tinha de acelerar. Só que nesta altura não há propriamente grande energia para se puxar, e eu estava a programar as pernas para correrem a 4’45’’ nos últimos quilómetros, e não para correrem a 4’30’’ (e estes 15’’ fazem muita diferença quando se leva quase uma maratona nas pernas). Só que também não estava para morrer na praia, então dei o que tinha e não tinha. No meu relógio, passei os 42,195 quilómetros em 3h15m20s, mas só cortei a meta com 3h17m57s, percorrendo um total de 42,7 quilómetros.
Talvez por ter sido a corrida mais cerebral e menos emocional que fiz, foi das poucas vezes que não cortei a meta emocionado. Senti um orgulho imenso, uma sensação de conquista, mas foi a celebração interior mais fria que já senti numa maratona. O lado bom de ter feito uma corrida cerebral foi o facto de ter terminado em ótimo estado físico. Uma ligeira dor de pernas, mas nada demais. Senti-me bem pior quando, duas semanas antes, fiz um treino de rampas de 13 quilómetros em Fornos de Algodres.


À noite, também consegui dormir perfeitamente, sem quaisquer dores. No dia seguinte de manhã, acordei cedo e fui fazer a tradicional corrida pós-maratona, de recuperação, para ajudar a eliminar o ácido que se acumula nos músculos ao longo da prova, e voltei a sentir-me fresco.

É bom que isto continue assim, porque nas próximas cinco semanas vou correr mais três maratonas: Lisboa, Munique e Porto.
